Um lide inusitado de um repórter inesquecível
Por: Cristina Lemos

Como estagiária da geral do JB, em outubro de 1976, tive a honra de acompanhar o repórter especial Edison Brenner na cobertura do enterro do famoso pintor Di Cavalcanti. O velório era no MAM e ficamos surpreendidos com a quase ausência de público : alguns familiares, uma pessoa ou outra de notoriedade e pouquíssimos fãs. Na verdade, um punhado de gente que mal conseguia preencher um canto do enorme saguão do MAM e deixava evidente que pintura não é uma arte que mobiliza multidões e que, possivelmente, o defunto não tivesse muito amigos.
Já não sabíamos o que fazer diante dessa evidência, até que Glauber Rocha entra esbaforido pela porta, dando ordens ao fotógrafo Mario Carneiro, e sem pedir licença aos familiares, começou a filmar o defunto, da cabeça ao pés. Glauber, ao saber da morte do amigo, remendou restos de filmes e decidiu fazer um documentário em homenagem ao pintor, pelo menos foi o que disse à filha furiosa de Di Cavalcanti, que não compreendia tal invasão.

Imediatamente, Brenner imaginou o seu lead, que me marcou para sempre, porque rompia completamente com a forma tradicional aprendida na faculdade do Quem/Quando/Onde/Por que, provando que o repórter pode sim recorrer à sua imaginação para mostrar ao leitor o clima e impacto que foi a chegada do Glauber. Creio também que esse lead só foi publicado, porque era no JB. Em outro jornal, acho que o editor iria torcer o nariz e mandar a matéria ser reescrita pelo Copy.
Eis o lead :

- “Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Seis. Sete. Oito. Nove. Dez. Onze. Doze. Corta. Agora dá um close na cara dele.”

Foram as ordens dadas por Glauber ao fotógrafo Mário Carneiro, que manipulava a câmera a cinquenta centímetros do defunto.

O mais interessante desse lead é que ele também causou impacto no próprio Glauber, tanto que o cineasta decidiu colocá-lo no documentário. É o próprio Glauber que lê em off a matéria escrita pelo Brenner, enquanto mostra as imagens do Di defunto.

Esse documentário tem dois títulos :
1)Di Cavalcanti
2) Ninguém assistirá ao formidável enterro da tua última quimera; somente a ingratidão, essa pantera, foi tua companheira inseparável.
Ao meu ver, o segundo é o mais apropriado, pois retrata bem a última despedida do pintor - poucos amigos, quase nenhum admirador - e também pelo fato da irmã ter impedido durante anos a sua projeção. Hoje, o documentário pode ser visto na Internet.
Essa é a minha modesta homenagem ao JB e ao grande repórter Edison Brenner, que tinha um texto maravilhoso. Em plena ditadura, decidiu escrever matérias sem o verbo ser. Na sua lógica, de maluco ou de gênio, por ser um verbo afirmativo, uma frase que o utilizasse nunca causaria dúvidas e, portanto, não poderia ser contestada. Ao retirar o verbo ser do seu texto, o repórter (ele) nunca poderia ser acusado pelas autoridades, por não ter afirmado coisa alguma.
Alguém consegue imaginar um texto sem o verbo ser ??? Pois é, o Brenner tinha capacidade de escrever sem ele. Tenho saudades enormes dessa época, do JB e do Brenner.
_____________________________________________
Cristina Lemos vive hoje em Marselha. Edison Brenner faleceu em 1998.


Comentários:


Cristina Lemos
Lembro bem da matéria sobre a Sudepe (Superintendência de Desenvolvimento da Pesca), que dava subsídios aos donos de barcos de pesca em todo o Brasil. Como o órgão não tinha fiscais suficientes para controlar toda a pesca nesse imenso litoral brasileiro, bastava enviar fotos das frotas de barcos para receber os subsídios. O Brenner provou que as fotos dos barcos eram montagens, que se multiplicavam ao bel prazer daqueles que recebiam os benefícios. Prêmio Esso, claro.
Isa Brenner
Cristina, muito obrigada linda matéria aonde podemos ver que, como sempre, podemos nos superar em uma época de crise. Grande homenagem. Obrigada por tudo !!
Natacha Parramon Brenner
Uauuuuuuuuuu!!! Ameeeiiii!!! Sou filha do Brenner e fiquei muito emocionada e orgulhosa com a matéria. Parabéns e Obrigada!!! Sentimos muita saudade dele tb. Mais uma vez obrigada!!! Natacha Brenner
tami
Edison Brenner era meu tio! A família adorou a oportuna homenagem...Ótimo texto e descrição muito boa do estilo dele!
Yuri Nassif
Linda homenagem ao Edison Brenner! Hoje faço parte da família e tento sempre descobrir mais sobre ele e suas grandes reportagens/matérias, como a que o levou a ganhar o Prêmio ESSO, sobre "O Conto de Fadas da Pesca no Brasil" (se não me engano era esse o título da série de matérias que foi publicada). Cristina, se tiver mais o que divulgar ou enviar sobre o Brenner, agradecerei eternamente. Um abraço e parabéns!
Annibal
Cristina, Emocionei-me às lágrimas. Tive o privilégio da amizade do Brenner. Vivi em primeira pessoa, muitos desse lampejos tão dele, onde ficamos com a dúvida eterna: gênio ou louco? Deixemos em uma loucura genial. Obrigado! Annibal

 

© 2023/2024 - Todos os direitos reservados para o autor, exceto quando informada a autoria de textos de terceiros.
Este material não pode ser publicado, transmitido por broadcast, reescrito ou redistribuído sem prévia autorização.
BelisaRibeiro.com.br